Caixa clara
Galeria Estação – São Paulo – Fevereiro e Março de 2018
CAIXA-CLARA Paula Braga
Olhar é registrar luz. Raios refletidos pelos objetos passam pela estreita passagem da pupila e marcam a retina. Tem-se a imagem, mas a retina não a mantém. Fechando- -se os olhos, a imagem desaparece. Desviando-se as pupilas para outra direção, a luz forma na retina uma nova imagem. E tudo o que a luz projeta na retina é enviado imediatamente para o cérebro.
Fosse a retina capaz de fixar por um bom tempo a luz que recebe, enxergaríamos em camadas sobrepostas. É o que acontece, rapidamente, quando a luz proveniente de um objeto é intensa: por alguns instantes, uma marca imprecisa daquele objeto muito luminoso permanece na retina mesmo depois de desviarmos as pupilas para outra direção. No entanto, há camadas no processo de ver o mundo. Nosso equipa- mento de captação visual alia-se à memória para olhar e imaginar ao mesmo tempo, num jogo de construção de imagens complexas e mentalmente sobrepostas. Eu olho uma cadeira e imagino a seu lado, difusamente, a mesa que vi ontem. Qualquer cena captada pela visão humana é transpassada por um fluxo de pensamentos e memórias imagéticas. Olhar e apenas ver o que está projetado na retina é uma situação excepcional, talvez possível para quem conseguir, com extrema concentração, barrar o fluxo de pensamento e de imaginação.
A câmera fotográfica, por não ter um cérebro, é a simplificação do olhar. A câmera só tem o equivalente a uma retina. Raios passam pela abertura da objetiva e marcam o filme ou papel. Porém, marcam-nos definitivamente. Uma próxima entrada de luz pela abertura fará outra camada de imagem na superfície sensível à luz. Por isso, nas câmeras analógicas, giramos o filme antes da próxima foto. A câmera nos fornece, portanto, uma representação do mundo sem sobreposição, como se os objetos existissem fixos do lado de fora do sujeito que os investiga. Por isso, durante muito tempo, acreditou-se que a imagem fotográfica poderia ser um registro neutro do mundo, sem nenhuma subjetividade, e deu-se o nome de “objetiva” a uma das partes da câmera que permitem a entrada da luz.
Sem dúvida, seria desejável que um instrumento tecnológico como a máquina de fotografia nos desse a conhecer o mundo objetivamente, cientificamente. Uma pena isso não ser possível. De fato, filósofos até hoje discutem se há mundo sem sujeito. A questão não é tão complexa se a pergunta for pela possibilidade de representação de mundo sem sujeito. Qualquer imagem é feita por um sujeito e olhada por outro. Não há imagem sem subjetividade. Mesmo que o fotógrafo apenas aperte o disparador da câmera, o próprio equipamento foi feito por sujeitos que seguem convenções culturais e ideológicas de representação de mundo (lembremos o caso dos filmes kodachrome, que até os anos 1970 não eram capazes de captar nuances refletidas pela pele negra).1
Como já argumentado por Flusser, a câmera é uma caixa-preta que funciona a partir de uma programação incontornável e decidida pelo programador. O papel do fotógrafo é, num trabalho de Sísifo, desafiar o equipamento constantemente, inclusive questionando a suposta objetividade da programação.
Usando tecnologia digital de construção de imagens e superfícies refletoras, Dani Tranchesi explicita a subjetividade da construção imagética. Mais do que imagens, os objetos produzidos pela artista são caixas-claras que desafiam o aparelho mesclando os três participantes do triângulo amoroso (que é também triângulo de dominação) formador das imagens de mundo: fotógrafo, fotografado e espectador. Trata-se de elaborar a imagem a partir da ação dos três sujeitos e das relações mútuas de objetificação que desempenham.
As séries de trabalhos desenvolvidos nos últimos dois anos perseguem uma imagem complexa, que sobreponha memória à grafia da luz e explore o papel do fotografado e do espectador no ato fotográfico. O uso que a artista faz de camadas transparentes para formar cada imagem desafia a lógica do aparelho fotográfico por mimetizar o processo de acúmulo de imagens mentais por cima da imagem recebida na retina pela visão natural. Usando um arquivo de fotografias digitais produzidas nos últimos dez anos em suas viagens por mais de sessenta países, Dani Tranchesi acessa fotos antigas como quem invoca memórias. Assim, a fotografia de prédios em uma cidade pouco arborizada pode provocar a nostalgia e a memória da floresta, e o resultado é uma terceira imagem, que representa a paisagem urbana concomitantemente com o desejo pelo verde. Por cima dessa construção, a obra recebe a imagem do espectador, que se vê refletido numa camada de acrílico ou de espelho.
As caixas-claras de Dani Tranchesi investigam aquilo que Phillipe Dubois chamou de imagem-ato, um tipo de fotografia que evidencia a força viva de uma imagem, “estando compreendido que esse ‘ato’ não se limita trivialmente apenas ao gesto da produção propriamente dita da imagem (o gesto da ‘tomada’), mas inclui também o ato de sua recepção e de sua contemplação. A fotografia, em suma, como inseparável de toda a sua enunciação, como experiência de imagem, como objeto totalmente pragmático”.2
É na prática, portanto, que a representação de mundo ocorre, tanto na prática do fotógrafo, que caça seu objeto na “floresta densa da cultura”,3 quanto na prática do espectador, que é capturado na superfície refletora e ativa seu narcisismo para se relacionar com a imagem, para se reconhecer naquilo que está representado na fotografia.
Quem observar os movimentos de um fotógrafo munido de aparelho (ou de um aparelho munido de fotógrafo) estará observando movimento de caça. O antiquíssimo gesto do caçador paleolítico que persegue a caça na tundra. Com a diferença de que o fotógrafo não se movimenta em pradaria aberta, mas na floresta densa da cultura. Seu gesto é, pois, estruturado por essa taiga artificial, e toda fenomenologia do gesto fotográfico deve levar em consideração os obstáculos contra os quais o gesto se choca: reconstituir a condição do gesto. A selva consiste de objetos culturais, portanto de objetos que contêm intenções de- terminadas. Tais objetos intencionalmente produzidos vedam ao fotógrafo a visão da caça. E cada fotógrafo é vedado à sua maneira. Os caminhos tortuosos do fotógrafo visam driblar as intenções escondidas nos objetos. Ao fotografar, avança contra as intenções da sua cultura. Por isto, fotografar é gesto diferente, conforme ocorra em selva de cidade ocidental ou cidade subdesenvolvida, em sala de estar ou campo cultivado. Decifrar fotografias implicaria, entre outras coisas, o deciframento das condições culturais dribladas.4
O objeto caçado por Dani Tranchesi não é apenas o retratado. Ela caça jogos de olhar e relações objetificadoras do outro. Certamente o grau de objetificação do retratado é o mais alto. Porém, fotógrafo e espectador também se objetificam, em grau mais leve, pois alternam entre sujeito e objeto da imagem-ato, assim como Narciso olhando sua imagem no lago é simultaneamente sujeito amante e objeto amado.
O lago aparece nas obras de Dani Tranchesi como espelho, acrílico ou imagem de água. Na série Mundos hipotéticos os três recursos refletores instigam o espectador a perseguir a própria imagem. Na transparência das camadas sobrepostas de cidades, florestas e praias formam uma imagem úmida, poça convidando ao mergulho. A superfície acrílica reflete o espaço onde a obra estiver instalada e o reflexo é incorpora- do à obra: é fundamental que o espectador veja-se na superfície refletora, e qualquer dúvida que ele tenha sobre usar ou não esse passe livre para a auto-observação será respondida pela pequena caixa de acrílico contendo um espelho, objeto dentro do objeto, porta de entrada para o observador participar da cena líquida, mesclar-se com as outras camadas da imagem, dissolver-se no mundo, cuja representação só é possível se houver o sujeito que a capte. Nas obras de Dani Tranchesi esse sujeito aparece também representado no reflexo. É, assim, sujeito e objeto simultaneamente.
Nas grandes fotos coloridas de rostos, transpassados por olhos em preto e branco, a fotógrafa explora o tema da fotografia documental eurocêntrica que investiga culturas ditas exóticas. Na floresta densa da cultura ocidental, esse gênero de retrato é valorizado como possibilidade de conhecimento do outro. Porém, na caça às relações de dominação imagética, as fotos de Dani Tranchesi expõem o retrato exótico como ápice da objetificação do fotografado ao substituir os olhos do modelo por olhos de quem o vê, por vezes, os olhos da fotógrafa.
Talvez o retrato mais famoso do gênero na história da fotografia seja a imagem da garota afegã feita em 1985 por Steve McCurry para a capa da National Geographic. Por mais que os grandes olhos verdes da menina encarem o fotógrafo e o espectador como se pudessem paralisá-los, e assim possam conferir à retratada uma força de defesa contra o voyeurismo ocidental, a câmera de McCurry é a Medusa que congelou a garota em um estado fixo.5 O fotógrafo “tira” uma fotografia, verbo que se coaduna com a crença de algumas culturas, como no caso dos ianomâmis brasileiros, de que não se deve fotografar os doentes pois a foto “tira” deles força vital. De fato, quando a câmera suga a luz que o fotografado reflete e grafa-a de forma fixa, transforma-o em objeto e retira-lhe todas as outras possibilidades, todos os “vir a ser” que estão em potência no sujeito e que lhe são negados na fixidez da fotografia.
A explicitação da passagem de sujeito a objeto é o assunto de investigação dessa série de Tranchesi. Quem quer que seja o sujeito de turbante vermelho, virou objeto reproduzido em segundo plano, em uma das camadas do fundo. Na superfície da imagem, o que vemos é a performatividade da fotografia e seu poder paralisante, com ênfase nos olhos de Medusa da fotógrafa na camada de cima da imagem. Na série de caixinhas de acrílico, o retratado está dissecado em lâminas, separado em partes, incluindo o elemento fundamental do ato gerador da imagem em análise: a lâmina com os olhos da fotógrafa. Penduradas no teto, as caixas de acrílico dão a ver de um lado o retrato do habitante de um país distante e do outro a imagem-ato. De um lado, o retratado congelado e do outro, o olhar congelante.
Na série Espelhos negros a fotógrafa aparece de corpo inteiro, com a câmera na mão, escondida entre as várias camadas da imagem. O espectador precisa caçá-la na pilha de transparências. Ao oferecer-se como caça, a ação da fotógrafa assume uma suavidade que afasta a dureza do olhar de Medusa. Disfarça-se na selva de objetos culturais para driblar os obstáculos impostos à caça a uma imagem não prevista pela programação do aparelho. Mas quem é o retratado nos espelhos negros? Essa é a questão, pois, ainda que as várias camadas mostrem pessoas, a câmera aponta para o espectador.
Como na famosa pintura Las meninas, de Velázquez, na qual o pintor aparece atrás de uma grande tela, na série Espelhos negros a artista está atrás de seu instrumento de reprodução do mundo e olha para quem está do lado de fora da obra, sujeito oculto que em Velázquez aparece refletido no espelho do fundo da sala e é observado pelas meninas: o rei e a rainha. Na composição de Dani Tranchesi o foco da câmera é o espectador. É interessante que em algumas peças dessa série “as meninas” não estejam olhando para fora. Em Bacia com espelho a moça olha para o retângulo de acrílico preto colado por cima da imagem, que necessariamente refletirá o espectador. Em O closet, o olhar amoroso do homem indiano está direcionado para a fotógrafa, que, por sua vez, mira quem estiver fora da cena. Para entrar na relação de papéis embaralhados, basta o espectador posicionar-se de forma a aparecer no espelho negro vertical do canto esquerdo da composição.
Espelho negro é uma referência também às telas dos celulares que abriram o capítulo da selfie na história da fotografia. Nunca as pessoas se autorretrataram tanto nem de forma tão narcisista. Reproduzir-se em imagem e circulá-la em redes sociais como se fôssemos produtos desejáveis aplaca a angústia de ser sujeito e portanto responsável pela ação. Muito mais cômodo é ser objeto sorridente produzido e distribuído pelo celular. Os espelhos negros de Dani Tranchesi exploram a ideia da selfie com rara dignidade, convidando o espectador a se reproduzir em imagem para interagir com as camadas da composição. A selfie efêmera aparece na superfície refletora do acrílico preto e junta-se por alguns instantes às imagens do acervo de memórias fotográficas da artista, equiparando-se ao homem indiano, à menina dos balões, à velha chinesa que cozinha em frente a um espelho.
Nas Galáxias, personagens arquivados ao longo dos anos pelo olhar de Medusa estão sobrepostos a um espelho. O espectador aparece como a camada de trás. Por mais que ele queira ser o sujeito observador, não passa de segundo plano, e tem que se procurar atrás das barreiras, olhar pelos vãos das grades, desviar das bolinhas de sabão, se quiser ser objeto. E mesmo assim será o produto da interação com as outras estrelas da galáxia. Para se ver no espelho, o observador terá que driblar obstáculos, olhar também o outro, procurar por si mesmo na floresta densa dos códigos culturais, compreender-se em integração com o mundo. E perceber que, assim como não há visão de mundo separada da memória e do pensamento de quem olha, não há observador separado do mundo.
Notas
1 SMITH, David. “ ‘Racism’ of early colour photography explored in art exhibition”, jan. 2013. Disponível em <https://www.theguardian.com/artanddesign/2013/jan/25/racism-colour-photography-exhibition>. Acessado em: 10 dez. 2017.
2 DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico. Campinas: Papirus, 2012, p. 15.
3 FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta. São Paulo: Hucitec, 1985, p. 18. 4 Ibid.
5 DUBOIS, op. cit., p. 146.